Descobrir a riqueza existente na alma de cada um e configurar a arte como eixo principal para a felicidade. Este é o meu propósito. Perceber e fazer arte em cima daquilo que foi descartado, creio ser uma das mais significativas expressoes de criatividade. Como matemática eu não conseguiria desenvolver este trabalho sem a amizade de uma artista verdadeira: a Mariana Martinelli. Quero publicar os trabalhos lindos da Mariana, de meus alunos e os meus trabalhos.
segunda-feira, 7 de maio de 2012
Texto - JOÃO MARIA CURANDO DOENTES
SÃO JOÃO MARIA BENZENDO DOENTES
Para falar sobre a mensagem atual de João Maria, faz-se
necessário um “olhar” e um “ouvir” atentos para o cotidiano dos
descendentes do Contestado. A memória popular, e especialmente
a dos mais velhos (Tompson, 1998), revela uma história rica e viva
sobre o Contestado. Segundo Halbwachs (1990, p. 51), “preservar
a memória é condição da identidade e da unidade de um grupo
humano. E, na sua exclusão está a base da alienação”. Ao observar
as “ramificações” da mística e da mensagem de João Maria na
atualidade, pode-se perceber que, cada vez mais, ela abrange
praticamente todas as dimensões da vida: a religião, a moral, a
ética, a política, a economia, a ecologia, entre outras.
Ao confrontar as “duas” mensagens de João Maria, a original
e a atual, é possível afirmar que, com o passar dos anos,
elas foram passando por um processo de ressignificação e, dessa
forma, continuam sendo uma referência significativa para a
comunidade cabocla do Contestado. João Maria é uma das referências
centrais desse processo de ressignificação da mítica do
Contestado.
João Maria foi interpretado, inicialmente, como homem
pacífico, conselheiro, benzedor, alguém que dava sermões nas
igrejas e se parecia com um frei ou um padre católico, um monge
ou alguém que procurava se afastar do mundo para estar com
Deus; quando aconteceu a guerra, ele, mesmo “ausente” fisicamente,
já era alguém a quem se atribuíam os comandos da guerra.
Nesse período ele foi confundido com José Maria, que, além
de fazer curas, instituiu os “doze pares de França” e partiu para
a luta. Os redutos ou as “cidades santas” foram organizados
segundo o seu comando. Era ele quem mobilizava muitos na
120 Gilberto Tomazi
Último Andar, São Paulo, (14), 109-126, jun., 2006
defesa da lei de Deus, contra “os peludos”, a República, os coronéis
e o capitalismo.
E, depois de quase um século, João Maria é lembrado como
um profeta ou um líder carismático (Weber, 1994) e, como um
curandeiro, milagroso, benzedor, monge, peregrino, pai, paizinho,
João de Deus ou João Maria de d’Agostini, de Jesus, Santo
Agostinho ou simplesmente João Maria. É lembrado também
como um apóstolo, um enviado de Deus, um santo, como alguém
que não morreu, continua vivo, encantado. Celebrado como
quem tinha e tem poderes sobrenaturais, que faz milagres, que
intercede em prol dos mais pobres e sofredores.
Além de uma identidade “divina” de João Maria, fala-se
de uma identidade profundamente humana e que em muito se
equipara à dos caboclos do Contestado. Nisso ele é lembrado
como um homem do bem, pessoa simples, humilde, de pouca
fala, que sabe ouvir, que fala com poder e a todos convence, que
não é homem de duas palavras, que se compadece dos que estão
doentes ou sofrendo, que tem poder sobre maus espíritos, detesta
a falsidade, o orgulho, o acúmulo de riquezas, é pacífico, busca
o governo de Deus e não o dos homens, alerta para o fim do
mundo e chama à conversão. É alguém que ensina aos demais
aquilo que sabe sobre plantações, remédios, rezas ou religião,
moralidade, ecologia, êxodo rural e problemas das grandes
cidades, entre outros.
Quanto à abrangênica da mensagem de João Maria, não é
possível uma delimitação mais precisa, mas pode-se sugerir que,
além de muitos locais de peregrinação espalhados por toda a
região, há um centro irradiador situado no Morro do Taió. Um
lugar encantado, porque o próprio João Maria estaria lá encantado.
Antes, porém, de se retirar para o morro, ele deixou o seu
poder para algumas pessoas. E, pelo fato de que “não morreu”,
ele continua a exercê-lo e a oferecê-lo aos que o procuram
e merecem recebê-lo. Hoje, muitos(as) benzedores(as),
curandeiros(as), rezadores(as) dão continuidade à sua missão,
colocando-se como seus(suas) “enviados(as)”.
A mensagem de “São” João Maria 121
Último Andar, São Paulo, (14), 109-126, jun., 2006
A partir das histórias ou dos fatos contados pelos descendentes
do Contestado (Tomazi, 2005), é possível verificar que
João Maria anunciava tempos de fome, guerra e peste; dias de
escuridão, o dia do combate definitivo entre o Anticristo e São
Sebastião; o tempo do comunismo e da volta da monarquia, dos
gafanhotos de aço, das distâncias que iriam se encurtar, entre
outros. Porém, mais do que anunciar guerras e calamidades ou
prever coisas futuras, percebe-se que as principais marcas deixadas
por ele, junto à cultura popular do Contestado, relacionam-
se à sua sabedoria e sensibilidade humana, que o faziam
capaz de tocar fundo o coração humano. As palavras que ele
dizia não eram esquecidas facilmente ou não foram esquecidas
jamais. Seu trabalho gratuito e solidário fazia com que muitos
conflitos, dores e problemas humanos fossem solucionados ou
ao menos amenizados. Sua sabedoria não consistia em proferir
muitas palavras e nem em apresentar os conhecimentos mais
avançados da ciência da época; baseava-se, sim, numa espécie
de “intuição-cheia-de-fé” (cf. Espin, 2000, passim) capaz de dar
um sentido à vida e uma interpretação convincente em relação
a certos mistérios ou a certas indagações que incomodavam os
que o procuravam.
Confirma-se hoje, tanto a partir da revisão bibliográfica
quanto na cultura popular, que João Maria captou os anseios dos
deserdados e transformou-se em porta-voz e intérprete das
angústias dos caboclos e caboclas do Contestado (Gallo, 1999).
Aos poucos, ele foi sendo recebido e divulgado como um homem
de Deus. Ele foi sendo associado ao próprio Cristo e aos
santos e, com isso, ainda hoje, continua a exercer grande influência
entre os descendentes do Contestado. Suas constantes
peregrinações de um lugar para outro, a renúncia aos bens materiais
e certo rigorismo moral fazem dele símbolo de um poder
que se coloca acima dos homens comuns e símbolo da identidade
social positiva dos pobres, dando-lhes uma nova identidade,
onde os excluídos se tornam os eleitos.
122 Gilberto Tomazi
Último Andar, São Paulo, (14), 109-126, jun., 2006
Não se encontra na cultura popular, na atualidade, quem
manifestasse uma rejeição explícita à mensagem ou à pessoa de
João Maria, como outrora fizeram aqueles que não se sentiram
promovidos ou legitimados pelos monges. Chegou-se inclusive
a afirmar que João Maria era um lunático, uma pessoa rude e
ignorante, e que, no Contestado, ao atribuírem os comandos da
guerra a João Maria ou ao utilizarem símbolos religiosos no
movimento, o que procuravam fazer era, na verdade, “encobrir”
ou “mascarar” o banditismo ou a selvageria que praticavam
(Machado, 2004). Na atualidade, em vez do desprezo à mensagem
de João Maria e do Contestado, diversas iniciativas foram
sendo fomentadas: por um lado, grupos econômicos a promovem
com fins turísticos e lucrativos; por outro, muitas iniciativas
populares, organizações e movimentos a resgatam no intuito
de contribuir no processo de superação da violência e da exclusão
em que se encontra a grande maioria dos descendentes do
Contestado.
Enfim, é possível constatar que há um rico universo simbólico
em torno do qual vive o homem do Contestado. E esse
universo inclui, além de uma linguagem de imaginação poética,
uma variedade de ritos, mitos, artes e religião que tecem o emaranhado
de sua experiência humana. Há uma verdadeira rede
de símbolos e significados que, além de situar o homem do
Contestado na história, oferece-lhe um sentido para a existência.
Entre os muitos símbolos do Contestado destacam-se e são
considerados de maior importância: as águas, as cruzes, os batismos,
as orações e os benzimentos e as romarias.
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