segunda-feira, 14 de maio de 2012

Décimo sétimo quadro de quarenta - FANATISMO RELIGIOSO

FANATISMO RELIGIOSO Que Canudos e Contestado foram lutas camponesas, oposição armada à ordem estabelecida no campo, é fato já fora de dúvida. Escritores, a começar por Rui Facó e Dorian Jorge Freire, procuraram demonstrar revestir-se de caráter de luta de classe a rebelião de Canudos. Coube-me a revelação do Contestado como guerra camponesa do Brasil, com caráter de luta social, através de artigos e, finalmente, com um romance-tese: "Casa Verde". É que, até então, o episódio ou merecia breves referências dos historiadores, ou era mal interpretado ou apresentado como uma campanha militar contra "bandidos do sul" iludidos por "falsos monges" ( Herculano Teixeira d'Assunção, Dermeval Peixoto, Setembrino de Carvalho) e como história de "crimes e aberrações" (Aujor Ávila da Luz). Isto, embora fosse patente a exploração dos camponeses pobres pelos fazendeiros e companhias estrangeiras (Railway e Lumber Colonization) que se apropriavam das terras da região, favorecidos pelos governos. O próprio general Setembrino de Carvalho, "Comandante das Forças em Operações de Guerra", prometia lotes de terras aos rebeldes que se entregassem; e o pacifista capitão Matos Costa, compreendendo a causa intrínseca da revolta, concedia entrevistas a jornais, declarando que os "jagunços" eram oprimidos e esbulhados em seus direitos. Havia algo de notável que não fora devidamente analisado e interpretado nesses movimentos camponeses, justamente o que não tem sido muito bem entendido, confundindo estudiosos e sociólogos. Refiro-me ao fanatismo religioso, questão quase sempre abordada de modo vago e superficial. Por que o campesinato, para se sublevar, fê-lo sob a influência de ascetas, recebidos como missionários divinos? Que significava a monarquia almejada pelos camponeses? Antes se diga que o fanatismo religioso, no Brasil, tem sido relegado, e somente interessou ao folclore, à imprensa, à polícia, aos juizes e, especialmente, aos psiquiatras. Ignorou-o a História. Só é objeto de estudo quando se discute a responsabilidade penal no crime sob impulso fanático, em razão de idéias delirantes. É um tema em debate no Direito. O registro dos episódios de fanatismo religioso parece dever-se à curiosidade mais do que às ciências. É necessário considerar que há o fanatismo típico de figura delituosa, e esse é o de pai que mata os filhos para não vê-los desgraçados numa sociedade injusta que os fará perecer de fome; ou de sectários que flagelam o possesso até sobrevir a morte, para que o demônio lhe abandone o corpo. De qualquer modo, porém, esse fanatismo tem a mesma causa intrínseca, e é desesperado inconformismo, pois o ato é cometido para salvar inocentes, vítimas de um mundo de misérias, e livrar outrem das forças do mal. "Quando não se suporta a realidade, esta é separada do pensamento e é dessa maneira que se originam as idéias delirantes" (E.Bleuler, Tratado de Psiquiatria, pág. 37, versão espanhola). Não interessa situar, neste trabalho, guerras religiosas, suicídios coletivos, protestos de auto-eliminação, nem manifestações pacíficas de qualquer crença. O fanatismo religioso de que se reveste a luta camponesa é caracterizado por não se restringir a uma só pessoa, a uma família, ou a um pequeno grupo; tratando-se de um fenômeno coletivo, fenômeno político-social, tradução fantástica das reivindicações da massa. É a religião como pretexto à revolução. Decorrência da realidade social, é fruto do regime de servidão do homem do campo, forma de luta contra o poder dos latifundiários e de sua ideologia. Não é simples loucura ou psicose coletiva, mas complexo de idéias mal representadas devido ao atraso da mentalidade humana que corresponde ao atraso da economia feudal ou semifeudal, estagnada. A massa procura e aceita ilusões, a que dá valor real, desde que signifiquem ou pareçam significar a sua libertação do jugo senhorial. Monarquia para os camponeses de Canudos e do Contestado era o reinado de Deus, o paraíso terrestre, o fim do poder dos ricos, o nivelamento social, a antecipação do futuro. Na república viam a causa de todos os males. "O rebelado arremetia com a ordem constituída porque se afigurava iminente o reino de delícias prometido. Prenunciava-se a República - pecado mortal de um povo - heresia suprema indicadora do triunfo efêmero do Anti-Cristo." (Os Sertões, pág. 206). Uma vez que citei a obra de Euclides da Cunha, convém lembrar que apresentou Antônio Conselheiro como representante natural no meio em que nasceu, tendo afirmado que "os estigmas atávicos tiveram entre nós, favoráveis, as reações do meio, determinando psicologia especial". "O homem dos Sertões - pelo que esboçamos - mais que qualquer outro, está em função imediata da terra. É uma variável dependente do jogar dos elementos. Da consciência da fraqueza para os debelar, resulta, mais forte, este apelar constante para o maravilhoso, esta condição inferior de pupilo estúpido da divindade. Em paragens mais benéficas a necessidade de uma tutela natural não seria tão imperiosa. Ali, porém, as tendências pessoais como que se alcochetam às vicissitudes externas, e deste entrelaçamento resulta, copiando o contraste que o observamos e a exaltação impulsiva e a apatia enervadora da atividade, a indiferença fatalista pelo futuro e a exaltação religiosa". (Os Sertões, pag.143). É necessário dizer que o fanatismo religioso é decorrência da realidade social e que se constitui numa esdrúxula ideologia de combate à opressão semifeudal, concebida sem consciência dos próprios objetivos, sem consciência política. Aqui, ou alhures, a explosão se inicia com o íncubo, um místico quietista ou contemplativo - o asceta - que, logo após a iniciação, se torna eremita, o qual prega a resignação e a renúncia, vaticina desgraças, guerras, o fim do mundo, e o reino milenar de Jesus Cristo. Anacoretas do mato, Antônio Conselheiro, João Maria e José Maria, - os três monges -, foram recebidos como "salvadores", "enviados do céu", pela massa amorfa do campo, facilmente sugestionável e desejosa de libertar-se da vida de misérias. A penitência e a renúncia significam a preparação necessária para a luta; o falar em punição dos pecadores, recompensa aos sofrimentos, ou o Céu, era o simbolismo da condenação dos exploradores e dos desejos da implantação de uma sociedade igualitária. Quanto à personalidade anormal dos fanáticos é interessante anotar a opinião do Prof. J. Alves Garcia, em seu "Compêndio de Psiquiatria, pag.477: "Alguns se tornam pregoeiros da política, de idéias nacionalistas, são missionários incompreendidos. Não nos esqueçamos, porém, de que todos os criadores de idéias e de épocas históricas foram autênticos fanáticos, e que o êxito de qualquer empresa só é possível quando alguém luta por ela com zelo e obstinação". É no meio rural que se desenvolve e eclode, mas onde vigora o regime feudal ou das sesmarias e grandes propriedades; na Europa , durante a Idade Média; no Brasil, no fim do século XIX e limiar do século XX. Nos sertões pátrios a massa camponesa se encontrava em estado latente de revolta à espera de pretexto que a desencadeasse, mas vivia alheia à civilização, em condições precárias de vida , isolada dos centros do País, isolada do mundo, concebendo-o à maneira primitiva, mística, crendo com fé inabalável na fantasia e no imaginário que lhes pareciam úteis e reais. A economia estagnada, o jugo senhorial, a falta de emprego e mesmo falta de serviços para camaradas da fazenda imensa em que o boi nascia e engordava sem cuidados especiais, criava uma fração plebéia e semiplebéia no campo. O agregado não tinha profissão definida e nem residência fixa. Sem bens nem haveres, perambulava de estância a estância. Era elemento predominante na massa camponesa, ao lado de arrieiros - empregados no transporte de mercadorias, tropeiros, tarefeiros, - todos desocupados durante a maior parte do tempo. Os próprios habitantes das cidades, estacionárias, não tinham em que trabalhar, sempre na dependência dos coronéis e sua autoridade. Oliveira Viana (Populações Meridionais do Brasil, pàgs.97 a 100, vol. I) observa o agregado extraindo da terra aforada, quase sem nenhum trabalho, o bastante em caça, frutos e cereais para viver vida frugal e indolente, tomando-o como plebe rural, formada pelo ''transbordo das senzalas repletas, as recovas da escravaria, o sobejo da mestiçagem das fazendas". Sabe-se o que representam as fazendas: absorvem toda a vida econômica, social e política do campo; constituem um só organismo com os vilarejos à órbitas, desolados; monopolizam o comércio, a indústria rudimentar de elementos primários de subsistência; geram consideráveis contingentes de agregados, arrieiros, foreiros, tropeiros, e também vadios de estrada, homens de briga, caçadores, bandoleiros, capangas. Tais domínios eram um obstáculo natural a todo progresso; impediam o desenvolvimento da região, o surgimento de cidades, construção de estradas, etc.; e a formação de uma classe média. Joaquim Nabuco (O Abolicionismo, pàgs.144 e 145) via que, ainda na vigência da escravidão, o trabalhador livre "não tinha lugar na sociedade, sendo um nômade, um mendigo, e por isso em parte nenhuma achava a ocupação fixa". E, prosseguindo, diz: "Foi essa a população que se foi internando como ciganos, aderindo às terras das fazendas ou dos engenhos onde achava agasalho, formando-se em pequenos nichos nos interstícios das propriedades agrícolas, edificando as suas quatro paredes de barro onde se lhe dava permissão para fazê-lo, mediante condições de vassalagem que constituíram os moradores em servos de gleba." Em "Campanha do Contestado" (págs., 163 a 171), Herculano Teixeira d'Assunção dá um quadro do desenvolvimento da região conflagrada, interessado em saber dos "Recursos Militares da Zona Serrana". Informa que "o único meio de transporte no município de Curitibanos é o muar"; que "a vila de Curitibanos comunica-se com diversos centros habitados, por meio de cargueiros"; que ''não existe serviço sanitário em Curitibanos comunica-se e a população quando necessita de serviços clínicos socorre-se de curandeiros". No município havia "11.000 habitantes, dos quais, na vila, 150 eram homens". Esta possuía 120 casas, apenas duas de pedras e tijolos pertencentes uma a um coronel e a outra ao promotor público. Com uma ferraria, uma selaria e correaria, uma sapataria e uma alfaiataria, não tinha sequer uma padaria. E em todo o extenso município 46 fazendas de gado. Campos Novos , com 15.000 habitantes, tinha 500 na vila e 150 casas particulares; na Freguesia do Capinzal, 80; na do Erval 30; na da Limeira, 30. Contava com 3 ferrarias, 3 marcenarias, 3 selarias, um moinho de trigo, 3 curtumes, uma relojoaria, duas fábricas de águas gasosas, um engenho de serrar madeira, uma olaria, 5 sapatarias, e no vasto território - 300 fazendas de gado. Lages, mais afastada do teatro de operações, a 12 léguas de Curitibanos e a 24 de Campos Novos, possuía 10.000 habitantes na cidade. Tinha o dobro do gado existente em Curitibanos e produzia laticínios, artigos de couro e chifres; farinha, vinho, fumo, obras de olaria, lã e linho. Eram de economia idêntica aos demais municípios da região, tudo girando em torno da fazenda de criação, num ou noutro a serraria se avantajando na exploração do trabalho servil. Numa zona morta paralisada, o latifúndio como base de toda a vida social, é que o fanatismo religioso encontrou terreno fértil. Primeiro surgiram os ascetas que, libertos dos bens materiais e idéias a eles vinculadas (egoísmos, ambições), passaram a vagar tomados da mania ambulatória, vivendo de esmolas, e a pregar preceitos da moral cristã. Ascetas plebeus. E, em Canudos, explica Euclides da Cunha, os primeiros do séquito tinham a mesma origem social: "gente ínfima e suspeita, avessa ao trabalho, farândola de vencidos da vida, vezada à mandria e à rapina". No Contestado, não era diferente. O reduto de Taquaruçu abrigava gente de briga, gente desocupada e muitos foragidos às cadeias. Referindo-se aos movimentos de 1.476 e 1.517, precursores da Grande Guerra Camponesa, diz Engels: "Nesse primeiro precursor do movimento encontramos o mesmo ascetismo que caracteriza todas as insurreições medievais, de tipo religioso, o que também, em tempos recentes, tem caracterizado o começo de todo o movimento proletário. Esta austeridade ascética, este postulado de renúncia a todos os prazeres e diversões, estabelece, ante as classes dominantes, o princípio da igualdade espartana e constitui uma etapa de transição necessária, sem a qual a camada inferior da sociedade, para se constituir como classe, essa camada inferior deve começar por desfazer-se de tudo que possa reconciliá-la com a ordem estabelecida e renunciar aos poucos prazeres que lhe tornam ainda suportável a vida mísera e que nem a opressão mais dura lhe pudera arrebatar. Por sua forma fanática e violenta , assim como por seu conteúdo, esse ascetismo plebeu revolucionário se distingue fundamentalmente do ascetismo burguês, tal como o pregavam a moral burguesa luterana e os puritanos ingleses e que no fundo não é mais do que uma manifestação da parcimônia burguesa". E na mesma obra (As guerras Camponesas na Alemanha, trad. de B. A. Montenegro, 1946, págs. 40 e 41) expõe: "Os plebeus eram a única classe que então se achava à margem da sociedade existente. Achavam-se fora da comunidade feudal e da comunidade burguesa. Não tinham nada; nem direitos, em sua vida normal nem sequer entravam em contato com as instituições de um Estado que lhes ignorava até a existência. Eram um símbolo vivo na dissolução da sociedade Feudal e corporativa e ao mesmo tempo eram os primeiros precursores da moderna sociedade burguesa. Assim se explica que já então a fração plebéia não podia contentar-se a com o combate ao feudalismo e à burguesia privilegiada, mas tinha de ir, pelo menos em imaginação, além da própria sociedade burguesa apenas no nascedouro. Explica-se igualmente porque essa fração desprovida de bens teve de renegar idéias e conceitos comuns a todas as sociedades baseadas no antagonismo de classes. As fantasias quiliásticas do cristianismo primitivo ofereciam o ponto de referência oportuno." Conclui-se que o ascetismo que caracterizou as insurreições camponesas, de tipo religioso, na Europa, também caracterizou as insurreições brasileiras. Conclui-se também que a fração plebéia do campo ia, em imaginação, além das sociedades de classes antagônicas. Então se compreende o fanatismo religioso dos camponeses de Canudos e do Contestado, a pregação dos monges; a reprodução de fantasias anabatistas; os vaticínios de flagelos e desgraças; a anunciação do Juízo Final. Vê-se que, com características próprias, travaram-se no Brasil lutas camponesas pela supressão de um regime semifeudal, revestindo-se de formas de misticismo e insurreição armada, mas sem consciência de seus próprios objetivos. Episódios também como os de Pedra Bonita, no Pernambuco; dos Mucker, no Rio Grande do Sul; e de Santa Dica, em Goiás; assim devem ser interpretados. Num Brasil que emergia do jesuitismo, em que a política se explicava pela teologia, logo após a emancipação dos escravos - com a conservação do latifúndio, o fanatismo religioso se constituía, em conseqüência, numa autêntica arma ideológica. Sem negar a influência de fatores de ordem biológica, ou etnológica, mas afirmando a sua importância a par dos ecológicos, deve-se destacar a predominância do econômico, situando o fanatismo religioso como um fenômeno político-social que ocorre em sociedade com estrutura feudal ou semifeudal. É um esclarecimento necessário, especialmente para os que continuam a ver em Canudos e no Contestado um choque de raças, de civilizações, de culturas, ou um espontâneo surto de fanatismo religioso, este tido como loucura coletiva ou psicose epidêmica sem significação histórica.

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