terça-feira, 22 de maio de 2012

Décimo oitavo quadro de quarenta - VIRGEM CONSTANTINA

Virgem Constantina Segundo Thomé (2004), o resultado do conflito foi 800 mil mortos, feridos e desertores entre os militares, legalistas e civis; e cerca de 5 mil a 8 mil revoltosos. A Guerra terminou com o acordo entre os estados de Santa Catarina e Paraná. “Com isso, os catarinenses assumiram de fato a administração das terras ao sul dos rios Negro e Iguaçu, nos vales dos rios Timbó, Timbozinho, Paciência e Canoinhas, e a oeste do rio do Peixe.” (THOMÉ, 2004, p.88) Revoltados com os governos federal e estadual, e apoiados pelos Monges - religiosos que peregrinavam pelo sertão pregando a palavra de Deus - os caboclos lutavam na esperança messiânica de um mundo melhor e de um reinado de paz e fraternidade, na expectativa de ressurreição do Monge José Maria. Assim, foram quatro anos de sangrenta violência. Nesse tempo, os jagunços se deslocavam de lugar para lugar, perdendo, assim, sua identidade: em outubro de 1912, acompanhados por José Maria, o povoado seguiu de Taquaruçu para Irani, a leste do Rio de Peixe; tempos depois, ameaçados pelas forcas militares, voltam para a agora cidade-santa de Taquaruçu; em 1914, os caboclos decidiram se retirar de Taquaruçu, em direção ao norte, em Caraguatá, na serra do Espigão. Mais tarde, liderados pela Virgem Maria Rosa, de apenas 13 anos, seguiram para Bom Sossego. Ao final, os caboclos se concentraram no Vale de Santa Maria, no coração da serra do Espigão, um local quase inexpugnável. 3. A história na ficção O papel da mulher na narrativa de Donaldo Schüller é fundamental para a história da Guerra do Contestado, ao contrário do que mostra a história oficial. No romance, encontramos várias espécies de personagens femininas: de Virgens a prostitutas; de meninas a mulheres; de caboclas a estrangeiras; de puritanas a selvagens; de guerreiras a submissas. Assim é o universo que povoa as terras contestadas, um lugar em que a questão de gênero vem demarcada também por diferenças entre classe, raça e etnia e que fica muito evidente em diversas personagens que são submetidas a diferentes tipos de poder. Para analisar a categoria gênero, acreditamos que, sendo esta uma categoria ontológica e histórica, ela está impressa no sistema de dominação-exploração e, para Saffioti (1987), o sistema de exploração-dominação está pautado no esquema gênero-classe-etnia, imprimindo uma direção de subordinação e opressão da mulher. O problema é que esses sistemas não correm paralelamente, “mas atuam conjuntamente, formando um só sistema de poder.” (SAFFIOTI, 1987, p.85) As mulheres do “Império Caboclo” são, em sua maioria, caboclas (mescla de índio + branco), negras e pobres. Descritas pelos homens, elas são vistas de duas maneiras: ou como objeto sexual, ou como virgem imaculada. Dentro dessa perspectiva, a mulher aparece sempre como um sujeito analfabeto, simples, sem cultura e cega pela religião. A única personagem que contrasta com esse perfil da cabocla catarinense é Christabel, uma americana rica, branca, culta e casada com um engenheiro que viera trabalhar na estrada de ferro. Dentro do “Império Caboclo”, percebe-se que a grande busca, na verdade, não é pela religião, através da crença na ressurreição de José Maria, mas sim pelo poder. E nessa briga entram os homens e as Virgens, as quais, dizendo ouvir a voz do líder morto, são as responsáveis, muitas vezes, por guiar o povo através dos vários redutos por que passam. Esse poder atribuído a elas, porém, é sempre conferido de perto pelos chefes homens. As relações de gênero na obra também são marcadas por hierarquias, obediências e desigualdades. Tudo isso devido à hegemonia masculina advinda de nossa formação social. Assim, o conceito de gênero nos ajuda a sistematizar essa problematização. Para Joan Scott, a categoria de gênero auxilia a elucidar as realidades históricas construídas, que no âmbito cultural, definem o que significa ser mulher e homem. O Gênero é uma das referências recorrentes pelas quais o poder político foi concebido, legitimado e criticado. Ele se refere à oposição homem/mulher e fundamenta ao mesmo tempo seu sentido.[...]Desta forma, a oposição binária e o processo social das relações de gênero tornam-se, ambos, partes do sentido do próprio poder. Colocar em questão ou mudar um aspecto ameaça o sistema por inteiro. (SCOTT,1990.p.14). A autora completa seu pensamento, afirmando que “Gênero deve ser visto como elemento constitutivo das relações sociais, baseadas em diferenças percebidas entre os sexos, e como sendo um modo básico de significar relações de poder.” (SCOTT, 1990, p.15). Nessa linha, Faria e Nobre complementam a questão,indicando que o conceito de gênero [..] coloca claramente o ser mulher e o ser homem como uma construção social, a partir do que é estabelecido como feminino e masculino e dos papéis sociais destinados a cada um [...] Gênero é um conceito relacional, ou seja, que vê um em relação ao outro e considera que estas relações são de poder e hierarquia dos homens sobre as mulheres (FARIA; NOBRE, 1997, p. 29-30). Nessa sociedade “contestada”, o que se verifica é que permanece a idéia de que o espaço público, a guerra, pertence ao homem, e o espaço privado, a casa, pertence à mulher. Contrariando, ou pelo menos, tentando contrariar, essas expectativas, nossas personagens do “Império Caboclo” são apresentadas por um narrador masculino, que mostra a importância feminina nessa briga pelo poder, por seus direitos, por sua liberdade, seja através das figuras das Virgens Constantina e Maria Rosa, que querem a dominação do reduto, agindo como “homens” e como divindades ao mesmo tempo, porém, mostrando suas “fraquezas” de mulher, uma ao se apaixonar por um jagunço e perder a virgindade, e a outra, ao se tornar refém de um espelho, à mercê da vaidade; seja através da figura emancipada de Christabel que, a princípio, é uma “dondoca” mimada, submissa ao marido e, depois, passa a ser uma transgressora ao querer a floresta, os jagunços, a pele negra; seja a partir da figura de Mariquinhas, que se recusa a transar com Adeodato, porém, é obrigada à força, inclusive a ser mulher do tirano e a ser estuprada por outro jagunço a mando do marido, adotando, depois disso, um comportamento de loucura e frieza mortal que incomodava Adeodato; ou seja, ainda, através da figura da velha prostituta Beija-Flor e seu batalhão de mulheres guerreiras, “lindas, lindaças”, as baianas que viviam nos milharais e que eram a “perdição” dos homens, mas que ao mesmo tempo “lutavam como homens”. Essas e tantas outras mulheres transgressoras que aparecem no romance e que aqui não relataremos por falta de tempo e de espaço, constituem o universo da Guerra do Contestado, um local historicamente masculinizado, mas que guarda em sua floresta valiosos mistérios femininos. E, por falar em lugar, a questão do deslocamento na obra também deve ser ressaltada. No romance, o povo muda de lugar, de localização, pelo menos quatro vezes; o caminho seguido para fugir das forças militares é Irani – Taquaruçu - Caraguatá – Bom Sossego. Em cada um desses redutos, o povo tenta se fixar, mas não consegue criar raiz e, a cada ponto a que eles vão, são estrangeiros, não conseguem formar sua própria história de forma a ficarem fragmentados, excluídos e marginalizados perdendo, sobretudo, sua identidade. De acordo com Shohat (2002, p.108), “definições raciais, hierarquias étnicas, identidades de gênero e formas de pertencimento ligadas ao sexo são conjunturais e historicamente situadas, sempre se alterando, transmudando-se através de histórias e geografias.” 3.1 O abuso de poder O primeiro contato com o poder masculino no universo do “Império Caboclo” se dá a partir da “necessidade” dos jagunços de obter Virgens em seu reduto. Essas meninas representavam a pureza, a renovação, o fio condutor que levava o povo ao grande líder José Maria. O que vemos, porém, é uma série de estupros e ataques pedófilos dos grandes líderes dos caboclos. No próprio romance, uma personagem sem nome é uma das únicas que têm essa consciência, já que o resto, cego por suas crenças, chegava a oferecer as filhas aos pedófilos: “Então é preciso agarrar-se num velho para virar santa? E não foi só com a Dorinha, não. O safado dormia com duas, na mesma noite e na mesma cama. E eram crianças... Esse é santo, Antônia?” (p.171) Após a morte de José Maria, seus seguidores faziam o mesmo e utilizavam-se do poder que tinham para possuir as mulheres que desejassem, fossem elas virgens ou não, tudo em nome da crença em José Maria. Algumas se submeteram passivamente; porém, outras, mostraram sua rebeldia e lutaram contra a violência por elas sofrida. Dentre essas mulheres corajosas, podemos citar Mariquinhas. Adeodato, o então líder, apaixonado por ela, manda matar o marido da moça para que ela ficasse com ele e, ainda, precisando se livrar de sua mulher, mata-a sufocada com um travesseiro. O jagunço, entretanto, extasiado pelo poder, comete as mais duras atrocidades com a mulher e com as Virgens pelas quais era responsável. Seu desejo sexual era saciado ao assistir os homens estuprando as meninas (dizia ao povo que eram os homens de José Maria, que tinham ressuscitado e que precisavam purificar as Virgens). Assim, a violência se dava constantemente sob o véu do suposto “milagre da purificação”. Também em outra situação, Adeodato bateu tanto na cabeça de uma menina de apenas cinco anos de idade que a matou; a mãe, chorando desesperada, também foi morta por ele, com pancadas na cabeça, junto ao corpo da filha; tudo isso é assistido pelos outros e ninguém faz nada. Outros casos de mulheres vítimas da violência dos homens são também citados na obra: é o caso de Sebastiana, mulata pela qual se apaixonou o jagunço Manuel, líder do reduto. O poder de Manuel também é responsável pela agressão à Virgem Constantina que, após ter mantido relações sexuais com Olivério, é descoberta pelo tirano. Cheio de seu poder, e aclamado pelo povo, Manuel dá uma surra de vara na moça até que ela perde a consciência e, quando volta a si está amarrada junto a uma árvore, sangrando muito. A situação de submissão e de crença cega é tamanha que o povo aceita passivamente a situação, e Constantina sente prazer nisso; ela sentia-se purificada com a dor; como crente que era, sentia-se como se estivesse atada junto ao corpo de José Maria. E como Manuel batia com a autoridade de quem quer “endireitar” alguém, a Virgem voltou a ser pura e o Império Caboclo tomou novamente seu rumo. Mas, é na figura de Maria Rosa que está a personagem mais bem trabalhada do romance. Maria Rosa atua como Virgem, como mãe, como mulher e como um carrasco a um só tempo. Respeitada e temida por todos, essa Virgem sempre aparecia em seu cavalo branco, empunhando uma espada e uma vara de marmelo em suas mãos. Batia violentamente nos homens, que se rendiam às suas vontades. Também sentia piedade das crianças e de inocentes doentes, e nela pairava a figura da Virgem Maria, acalmando seus filhos. Com tanta responsabilidade, Maria Rosa acabara se esquecendo de que era mulher; não via os jagunços como homens, e não deixava que a vissem como mulher. Até que um dia ganhou um espelho do capitão do Exército e passou a se ver como mulher, como desejada; a descoberta do corpo faz aflorar a sensualidade na Virgem, que recusa essa nova descoberta mediante o fato de ter o poder e de ser considerada uma divindade entre os homens, e é justamente essa divindade que anula a sua porção mulher. Finalmente, uma personagem que merece destaque na obra é Etelvina, a Virgem que conseguiu fugir da “Casa das Virgens”, a casa em que elas eram estupradas e ameaçadas com o chicote a todo instante por Adeodato. A fuga dessa personagem representa não só a liberdade coletiva, mas a esperança da mulher (de ontem e de hoje) em sua constante luta contra o poder que a oprime: Por se ver oprimida, Etelvina se descobre femininamente poderosa e explode. Mais do que morrer, importava-lhe viver com dignidade, ensaiando a revolução que é maior do que a social, a feminina. Mostra às prisioneiras como ela haver caminhos que levam à força adormecida à sombra de gestos suaves. Com a revolta encabeçada por Etelvina emerge a mulher do novo século, livre, enfim, do regime que por milênios lhe negou o poder. (p.232) 4 Considerações Finais O discurso de “Império Caboclo” é o de uma sociedade discriminada, deslocada e excluída. Terminamos o trabalho assombrados pelas inúmeras vozes das mulheres que ressoam no meio da floresta, reclamando seus direitos, sua liberdade, sua identidade e sua história. Os ecos da dor e da violência sofrida por essas mulheres caboclas ainda podem ser ouvidos em nossa sociedade, e o duro é acreditar que eles ainda soarão por um longo tempo. O que nos consola, porém, é que eles nunca silenciaram e que milhares de Etelvinas surgem, constantemente, em vários lugares do mundo na luta contra a opressão.

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