segunda-feira, 7 de maio de 2012

Décimo quinto quadro de quarenta - São João Maria curando doentes

SÃO JOÃO MARIA BENZENDO DOENTES Para falar sobre a mensagem atual de João Maria, faz-se necessário um “olhar” e um “ouvir” atentos para o cotidiano dos descendentes do Contestado. A memória popular, e especialmente a dos mais velhos (Tompson, 1998), revela uma história rica e viva sobre o Contestado. Segundo Halbwachs (1990, p. 51), “preservar a memória é condição da identidade e da unidade de um grupo humano. E, na sua exclusão está a base da alienação”. Ao observar as “ramificações” da mística e da mensagem de João Maria na atualidade, pode-se perceber que, cada vez mais, ela abrange praticamente todas as dimensões da vida: a religião, a moral, a ética, a política, a economia, a ecologia, entre outras. Ao confrontar as “duas” mensagens de João Maria, a original e a atual, é possível afirmar que, com o passar dos anos, elas foram passando por um processo de ressignificação e, dessa forma, continuam sendo uma referência significativa para a comunidade cabocla do Contestado. João Maria é uma das referências centrais desse processo de ressignificação da mítica do Contestado. João Maria foi interpretado, inicialmente, como homem pacífico, conselheiro, benzedor, alguém que dava sermões nas igrejas e se parecia com um frei ou um padre católico, um monge ou alguém que procurava se afastar do mundo para estar com Deus; quando aconteceu a guerra, ele, mesmo “ausente” fisicamente, já era alguém a quem se atribuíam os comandos da guerra. Nesse período ele foi confundido com José Maria, que, além de fazer curas, instituiu os “doze pares de França” e partiu para a luta. Os redutos ou as “cidades santas” foram organizados segundo o seu comando. Era ele quem mobilizava muitos na 120 Gilberto Tomazi Último Andar, São Paulo, (14), 109-126, jun., 2006 defesa da lei de Deus, contra “os peludos”, a República, os coronéis e o capitalismo. E, depois de quase um século, João Maria é lembrado como um profeta ou um líder carismático (Weber, 1994) e, como um curandeiro, milagroso, benzedor, monge, peregrino, pai, paizinho, João de Deus ou João Maria de d’Agostini, de Jesus, Santo Agostinho ou simplesmente João Maria. É lembrado também como um apóstolo, um enviado de Deus, um santo, como alguém que não morreu, continua vivo, encantado. Celebrado como quem tinha e tem poderes sobrenaturais, que faz milagres, que intercede em prol dos mais pobres e sofredores. Além de uma identidade “divina” de João Maria, fala-se de uma identidade profundamente humana e que em muito se equipara à dos caboclos do Contestado. Nisso ele é lembrado como um homem do bem, pessoa simples, humilde, de pouca fala, que sabe ouvir, que fala com poder e a todos convence, que não é homem de duas palavras, que se compadece dos que estão doentes ou sofrendo, que tem poder sobre maus espíritos, detesta a falsidade, o orgulho, o acúmulo de riquezas, é pacífico, busca o governo de Deus e não o dos homens, alerta para o fim do mundo e chama à conversão. É alguém que ensina aos demais aquilo que sabe sobre plantações, remédios, rezas ou religião, moralidade, ecologia, êxodo rural e problemas das grandes cidades, entre outros. Quanto à abrangênica da mensagem de João Maria, não é possível uma delimitação mais precisa, mas pode-se sugerir que, além de muitos locais de peregrinação espalhados por toda a região, há um centro irradiador situado no Morro do Taió. Um lugar encantado, porque o próprio João Maria estaria lá encantado. Antes, porém, de se retirar para o morro, ele deixou o seu poder para algumas pessoas. E, pelo fato de que “não morreu”, ele continua a exercê-lo e a oferecê-lo aos que o procuram e merecem recebê-lo. Hoje, muitos(as) benzedores(as), curandeiros(as), rezadores(as) dão continuidade à sua missão, colocando-se como seus(suas) “enviados(as)”. A mensagem de “São” João Maria 121 Último Andar, São Paulo, (14), 109-126, jun., 2006 A partir das histórias ou dos fatos contados pelos descendentes do Contestado (Tomazi, 2005), é possível verificar que João Maria anunciava tempos de fome, guerra e peste; dias de escuridão, o dia do combate definitivo entre o Anticristo e São Sebastião; o tempo do comunismo e da volta da monarquia, dos gafanhotos de aço, das distâncias que iriam se encurtar, entre outros. Porém, mais do que anunciar guerras e calamidades ou prever coisas futuras, percebe-se que as principais marcas deixadas por ele, junto à cultura popular do Contestado, relacionam- se à sua sabedoria e sensibilidade humana, que o faziam capaz de tocar fundo o coração humano. As palavras que ele dizia não eram esquecidas facilmente ou não foram esquecidas jamais. Seu trabalho gratuito e solidário fazia com que muitos conflitos, dores e problemas humanos fossem solucionados ou ao menos amenizados. Sua sabedoria não consistia em proferir muitas palavras e nem em apresentar os conhecimentos mais avançados da ciência da época; baseava-se, sim, numa espécie de “intuição-cheia-de-fé” (cf. Espin, 2000, passim) capaz de dar um sentido à vida e uma interpretação convincente em relação a certos mistérios ou a certas indagações que incomodavam os que o procuravam. Confirma-se hoje, tanto a partir da revisão bibliográfica quanto na cultura popular, que João Maria captou os anseios dos deserdados e transformou-se em porta-voz e intérprete das angústias dos caboclos e caboclas do Contestado (Gallo, 1999). Aos poucos, ele foi sendo recebido e divulgado como um homem de Deus. Ele foi sendo associado ao próprio Cristo e aos santos e, com isso, ainda hoje, continua a exercer grande influência entre os descendentes do Contestado. Suas constantes peregrinações de um lugar para outro, a renúncia aos bens materiais e certo rigorismo moral fazem dele símbolo de um poder que se coloca acima dos homens comuns e símbolo da identidade social positiva dos pobres, dando-lhes uma nova identidade, onde os excluídos se tornam os eleitos. 122 Gilberto Tomazi Último Andar, São Paulo, (14), 109-126, jun., 2006 Não se encontra na cultura popular, na atualidade, quem manifestasse uma rejeição explícita à mensagem ou à pessoa de João Maria, como outrora fizeram aqueles que não se sentiram promovidos ou legitimados pelos monges. Chegou-se inclusive a afirmar que João Maria era um lunático, uma pessoa rude e ignorante, e que, no Contestado, ao atribuírem os comandos da guerra a João Maria ou ao utilizarem símbolos religiosos no movimento, o que procuravam fazer era, na verdade, “encobrir” ou “mascarar” o banditismo ou a selvageria que praticavam (Machado, 2004). Na atualidade, em vez do desprezo à mensagem de João Maria e do Contestado, diversas iniciativas foram sendo fomentadas: por um lado, grupos econômicos a promovem com fins turísticos e lucrativos; por outro, muitas iniciativas populares, organizações e movimentos a resgatam no intuito de contribuir no processo de superação da violência e da exclusão em que se encontra a grande maioria dos descendentes do Contestado. Enfim, é possível constatar que há um rico universo simbólico em torno do qual vive o homem do Contestado. E esse universo inclui, além de uma linguagem de imaginação poética, uma variedade de ritos, mitos, artes e religião que tecem o emaranhado de sua experiência humana. Há uma verdadeira rede de símbolos e significados que, além de situar o homem do Contestado na história, oferece-lhe um sentido para a existência. Entre os muitos símbolos do Contestado destacam-se e são considerados de maior importância: as águas, as cruzes, os batismos, as orações e os benzimentos e as romarias.

Nenhum comentário:

Postar um comentário